O navio que nos transporta está em perigo. É esta percepção do mundo que Isabel Garcia propõe através do tema da sua exposição “Save Our Ship”, entendida como um SOS que recorda o código Morse: um pedido de socorro ou um grito colectivo desesperado sobre o futuro da vida no planeta devido às crises generalizadas provocadas pelas crises climáticas e pela pandemia. .
Maio 2024
O navio que nos transporta está em perigo. É esta percepção do mundo que Isabel Garcia propõe através do tema da sua exposição “Save Our Ship”, entendida como um SOS que recorda o código Morse: um pedido de socorro ou um grito colectivo desesperado sobre o futuro da vida no planeta devido às crises generalizadas provocadas pelas crises climáticas e pela pandemia. Um perigo máximo e um grito de alerta que, segundo o filósofo e antropólogo da ciência Bruno Latour, já não se caracteriza somente por crises ecológicas, por crises culturais e políticas assim como guerras .É, pois, através da designação “Save OurShip”, que a vida e o mundo se abrem à nossa frente com um grande ponto de interrogação e um grito de alerta. Esse grito já estava anunciado nas últimas exposições de Isabel Garcia. No catálogo da exposição “Grenhouse II” (2023), Isabel Garcia escreveu que tendo recebido em 1985 uma bolsa da Fundação Calouste Gulbenkian, iniciou então uma pesquisa que lhe permitiu interligar diferentes materiais como ferro, vidro, aço polido e pedra. Dessa investigação nasceriam as primeiras “Greenhouses”, estruturas em vidro aramado e ferro, compostas por módulos que abrigavam taças esculpidas em mármore. Umas continham sementes secas e água. Outras estavam cheias de germinações de batatas. Este interesse pelo mundo vegetal e pelos alimentos básicos continuou associado à interpretação das condições atmosféricas benéficas ou destruidoras. Por exemplo, o pão que também aparece agora em “Save Our Ship” é uma presença habitual no seu trabalho usado como matriz das frottages sobre papel, depois de passado a bronze, com ofoi o caso das exposições “Matriz” (Galeria Serpente, 2019), “Seed/Semente” (Galeria Arte Periférica,2020), “Seedland” (Museu de História Natural, 2021), “Greenhouse I” (Galeria Diferença, 2022) e “Grenhouse II”, na Galeria da Sociedade Martins Sarmento (Guimarães, 2023).
Este mundo da materialidade dos artefactos e das “coisas” naturais ou dos objectos serviu-lhe de símbolo para criar, alegoricamente, imagens visuais e histórias que nos falam da necessidade do sagrado, dos princípios éticos e morais, mas também sobre a grande questão que constitui hoje a continuidade da existência humana.
Será talvez esta metodologia de trabalho que Isabel Garcia segue, seja nos trabalhos tridimensionais, seja na pintura, como é o caso desta actual série de pinturas nas quais, através de paisagens angustiantes ou do movimento das nuvens, nos leva a reflectir sobre a transformação e a desorientação que guiam o mundo contemporâneo.
Cada pintura devolve-nos fragmentos imaginários desse futuro em aberto. Se em “Save Our Ship, citando Anish Kapoor” evoca a exposição “Turning the world up side down” (2011) deste artista e as suas esculturas com superfícies reflectoras, ao contrário de Kapoor, Isabel Garcia não pretende “virar o mundo de pernas para o ar”, nem suscitar a contemplação.
O seu objectivo é mais urgente e pragmático. Na série de pinturas de paisagens agora apresentadas – como em “Save Our Ship # 1”, “Save Our Ship Tempestade” ou “Save Our Ship Luar” – sentimos a força dos elementos ambientais. Apesar da sua dramaticidade o nosso olhar encontra, estranhamente, na profundidade da paisagem uma sensação de espaço-tempo. Temperatura, pluviosidade, luminosidade, profundidade e pressão atmosférica parecem todas elas absorver estes céus em movimento que se expandem, tal como as montanhas que desaparecem no horizonte. São céus mais ou menos ameaçadores; montanhas escarpadas também assustadoras; e plantas, fetos que crescem e desabrocham.
Estas paisagens são construídas como perspectivas em altitude, cujos horizontes parecem prolongar-se para lá dos limites da tela. Depois, são paisagens que se encadeiam umas nas outras, formando sequências de imagens que transmitem diferentes sensações e estados perceptivos. Pintura expandida e sensorial na qual irrompe uma teatralidade cinematográfica. Os elementos dos pequenos abrigos são agenciadores ou operadores de significado, tal como os elementos dos pães em “Save Our Ship, # 2”, “# 3”, “#4”, “# 6”, ou “# 7”. Neles, podem esconder-se perigos que espreitam, tais como minas e armas brancas como soqueiras. Mas quando vem a aurora e tudo parece renascer, a esperança brilha no horizonte e o coelho da abundância salta do seu esconderijo. Identicamente, os pães, como sementes que se abrigam ou suspendem no ar, remetem para a ideia de multiplicação, espalhando-se na atmosfera.
Como construir então uma ecologia política como advogam os pensadores ecologistas? Teremos de construir novos modelos institucionais, mudanças éticas e novas formas de coexistir? Seremos capazes de novas formas de cidadania? São estas questões que ao conversarmos com Isabel Garcia nos interpelaram ao observar a proposta pictórica de “Save Our Ship”;ideias que podem actuar e transformar consciências, desencadear conversas e acções mais ou menos visíveis em nós ao olharmos estas obras.
E creio não ser despiciendo afirmar que a estratégia formal de revisitação da pintura clássica deu a Isabel Garcia a possibilidade de a transmutar, enquanto construiu um forte dispositivo comunicacional mais directo para transmitir as questões que a preocupam. “Poppy Day”* será talvez o fecho da exposição, enquanto símbolo plurisemântico das memórias das guerras do século XX. Num momento em que assistimos a mutações climáticas que afectam a natureza e os seres humanos e não humanos, todos têm de ser vistos como uma única colectividade ameaçada de extinção. Pois aqui está a arte a interrogar o futuro do planeta!
**Filomena Serra
Abril de 2024