ISABELGARCIA

LOVE AFFAIR . 2006

Um olhar, plasticamente reflexivo, sobre a mulher, é um exercício já experimentado pela pintora Isabel Garcia. Se até aqui esse processamento foi feito enfatizando aquilo que, em diferença de género, é gerador da desigualdade de tratamento e condição para as Mulheres agora, no conjunto de trabalhos apresentados no Convento dos Capuchos, a artista fala-nos no e do feminino, da plenitude de apenas ser, porque se está vivo, porque quem vive, sente e deixa sentir.

 

Convento dos Capuchos

Casa da Cerca • Março de 2006

Video Rosa Rosae 

de Isabel Garcia

Instalação

LOVE AFFAIR

Um caso (serio) de Amor

ANA ISABEL RIBEIRO

Bronzes

LOVE ME

Mal me quer,
bem me queira... 

LEONOR NAZARÉ

ISABELGARCIA

Nestes desenhos, ilusoriamente simétricos, o desdobramento da figura é o verso de si própria e não o seu reflexo. São estas frases, sempre em oposição que, se por um lado, melhor clarificam o sentido e a pertinência de cada uma destas mulheres no seu conjunto, por outro, alertam para o desassossego e a desinquietação do amor ou das suas verdades (aqui quase assumidas como aforismos).

Instalação Love Affair

Instalação Skins: Frottage a pastel e óleo sobre papel de arroz e crina de nylon. | Etiquetas de bronze niquelado 1,20 x 0,18 m (cada peça) | Negativo das etiquetas, gessos, 40 x 30 cm (cada peça)
Instalação Wet Kisses: Aço polido, água e bolas de ping-pong 6 x 1 m

Um Caso (sério) de Amor

Um olhar, plasticamente reflexivo, sobre a mulher, é um exercício já experimentado pela pintora Isabel Garcia. Se até aqui esse processamento foi feito enfatizando aquilo que, em diferença de género, é gerador da desigualdade de tratamento e condição para as Mulheres agora, no conjunto de trabalhos apresentados no Convento dos Capuchos, a artista fala-nos no e do feminino, da plenitude de apenas ser, porque se está vivo, porque quem vive, sente e deixa sentir.

Três momentos essenciais constituem esta exposição e, apesar de poderem, cada um por si, ter vida própria, eles mantêm e sustentam várias faces de um único discurso. Diferentes espaços ficam assim inundados das certezas e das incertezas deste “Caso de Amor”. Um caso sério este, o que a pintora mantém consigo e com o seu trabalho, e connosco também, na medida em que nos permite a partilha, implicando-nos nele.

Love affair é tudo isto. Mas, é também, a expressão do tempo da construção, gesto a gesto, do fazer manual que dá origem aos objectos. Estes ganham, nesta sua dimensão específica, uma espessura outra que, muitas vezes, convoca a mão desse gesto aos olhos de quem os vê. Porque Isabel Garcia é também assim. Não se ausenta do que faz.

Neste discurso plástico coerente, pensado em função do espaço do Convento, fica claro que para Isabel Garcia o amor não é um dogma. É algo que continuamente se trabalha, nele investindo o corpo e as mãos contrutoras como extensão do pensamento. A gradação das intensidades desse mesmo discurso é-nos dada através dos diferentes materiais utilizados: do bronze ao papel, passando pelo vídeo, pelo gesso e pela água, na procura de um outro movimento.

Neste sentido, o conjunto dos trabalhos apresentados, independentemente do seu suporte revelam transversalmente como que uma dúvida que não quer ser dissipada: será que posso ser e não ser ao mesmo tempo? Ou seja, tudo se instaura e cresce na dúvida, na dualidade permanente da sua plena afirmação seguida, sempre, pela reafirmação da possibilidade do seu contrário.

I. vinte e quatro desenhos | vinte e quatro mulheres

Este permanente (re)centramento da dúvida que se instaura no sujeito desdobra-se, por exemplo, na série de vinte e quatro desenhos representando mulheres. Sendo exactamente o dobro das placas de bronze e dos respectivos negativos em gesso apresentados na sala contígua, apenas duas estão visíveis. Na sua totalidade, apenas podem ser vistas no vídeo que lhes injecta uma espécie de vida artificial. Desenhadas como que glosando um baralho de cartas, estão fixadas várias mulheres, das heroínas às anti-heroínas – dos contos infantis (que para sempre se colam às memórias), dos filmes de ficção (cujas proezas se igualam às dos mais destemidos heróis), mas também mulheres fabricadas pela sociedade de consumo à medida do desejo de quem as deseja. 

Nestes desenhos, ilusoriamente simétricos, o desdobramento da figura é o verso de si própria e não o seu reflexo. Esta duplicidade é extensiva aos seus títulos já que estes contêm em si, e simultaneamente, a sua afirmação e a sua negação. São estas frases, sempre em oposição que, se por um lado, melhor clarificam o sentido e a pertinência de cada uma destas mulheres no seu conjunto, por outro, alertam para o desassossego e a desinquietação do amor ou das suas verdades (aqui quase assumidas como aforismos).
 
Também o recurso à ideia de baralho de cartas remete para o jogo (a sós ou com um ou mais parceiros), para o falso espelho, em suma, para uma espécie de “traição” do duplo de mim que já não sou eu. Ou seja, eu dobro-me e não me revejo e volto-me sobre mim; olhando para cá e para lá ao mesmo tempo, eu vejo tudo aquilo que me envolve – a decisão e a indecisão, o querer e o não querer, a escolha pelos opostos, num caminho conducente à afirmação plena do livre arbítrio. Em suma, “quero compreender”(1).

Isabel Garcia gera deste modo, para cada situação, para cada desenho, uma afirmação e a sua própria possibilidade de negação. Porém, num segundo momento, procura já a conciliação, aproximando a certeza inicial da distanciação do seu oposto. Nesta dupla fragmentação, a autora dá espaço à diferença numa recusa assumida da convencionalidade discursiva sobre o amor, como se de um jogo, agora ingénuo, se tratasse.

II. bronze| gesso

Esta ideia de duplo é trabalhada de um outro modo pela artista no conjunto de doze placas de bronze – o positivo – colocadas frente a frente com outras tantas, em gesso – o seu negativo. As cores dos materiais, as suas diferentes durezas e texturas, são também elementos que enfatizam a complementaridade existente neste grupo apresentado em sequência ao anterior. A duplicidade mantém-se assim como uma regra subtil do mesmo jogo. 

A sua forma de etiquetas (já presentes nos desenhos anteriores, mas agora ampliadas e construídas num material perene), no caso das placas de bronze, remete, por outro lado, para uma necessidade de classificação, de arrumação, reflectindo uma diferente organização. Se, anteriormente, a ideia do duplo é afirmada pela possibilidade do ser e não ser ao mesmo tempo, aqui essa ideia é expressa nos negativos das placas. As suas inscrições já não questionam porque, formalmente, parecem aguardar “o” ou “um“ destino que as suspenda num qualquer lugar. Passaremos então a saber o que se encontra daí em diante, dissipadas que estão as dúvidas anteriormente colocadas. Quase
adágios ou pequenas frases soltas retiradas de canções conhecidas, permitem inventariar razões, declarações, ironias, ciladas, desejos de um amor sem destinatário. Um amor sem amante, mas que reflecte sobre si próprio, enunciando-se.

III. lago de beijos – Wet kisses

No claustro do Convento, contrariando a sua geometria, encontra-se um lago de beijos – Wet kisses. Ali estão eles, esféricos como o próprio mundo, flutuando, à deriva do vento e dos caprichos da água pouco profunda que os acolhe. Brancos, quase castos, cada um deles tem a mesma inscrição (kiss), para que não restem dúvidas e não sejam levantadas suspeitas sobre a sua identidade. A sua mobilidade, o seu fluir, o seu redemoinhar, fazem a ligação formal ao terceiro momento que integra esta exposição: a instalação K’un.

IV. K’un | Skins - “A linguagem do amor é uma pele (…)”(2)

K’un fundamenta o seu valor simbólico, relativamente à sua disposição física na sala, no I Ching. Refere-se ao princípio do feminino [inserir nota da descrição], dentro da coerência discursiva patente nos momentos anteriores desta exposição.

Este K’un é constituído por um conjunto de doze Skins de grandes dimensões. Se esta designação já foi utilizada por Isabel Garcia em trabalhos anteriores que, tal como este, tinham o amor como tema, ela alcança aqui uma nova e outra dimensão a partir de um mesmo procedimento técnico – a “frottage” (3), seguida de colagem. É outra a escala, a transparência, o cromatismo, o movimento das inscrições sobre o papel. Ao lago, a artista vai buscar os beijos e os seus movimentos, às placas de bronze, as palavras. O desenho alcança assim uma forma quase orgânica, concentrada e dispersa, assente em pontos irradiadores de fluxos apenas limitados pela superfície de suporte.

A estes grandes planos de papel aos quais muitos outros, de pequenas dimensões (as frotagens), estão colados, Isabel Garcia denominou-os de “skins”, ou seja, “peles”. Pele de ninguém, apenas superfície inerte que exibe as marcas, as cicatrizes do afago ou da agressão. Neste sentido, a pele marcada equivale à caligrafia da memória, apela ao tacto que um dia sentiu conferindo-lhe um sentir e um sentido únicos – quem sabe se um amor, um discurso amoroso ou fragmentos dele próprio, implicando um diálogo, uma conversa, uma declaração. Essa declaração é, nas palavras de Roland Barthes a “propensão do sujeito apaixonado falar abundantemente, numa emoção contida, com o ser amado do seu amor, dele, de si, de ambos: a declaração não incide sobre o testemunho do amor, mas sobre a forma, infinitamente comentada, da relação de amor” (4).

As palavras assim inscritas, soltas de um discurso contínuo, ganham dimensões insuspeitas e colam-se, aleatoriamente, à pele de qualquer sujeito, de qualquer “eu” disponível a deixar-se marcar pelo amor. Este sujeito passa então a ser o testemunho perene, porém outro, daquilo que, na sua errância, não o é – o próprio amor por si e para além de si. E é através desta quase alquimia que esta é uma pele que não envelhece com o tempo, porque é aditiva e cumulativa dos saberes da memória, logo, e também, da experiência.

V. porque de amor se trata

Representar o amor assim, olhando-o pelo lado das certezas e das incertezas que lhe estão, e são, intrínsecas, é sentir a vida pulsar na sua plenitude. É um acto de apaziguamento, é matéria afectiva e plástica para meditar. Para ver e rever. Para guardar e não esquecer, mesmo que, como esta exposição nos mostra, tudo possa ser esquecido.


Ana Isabel Ribeiro

1.  “COMPREENDER. Vendo de repente o episódio de amor como um nó de razões inexplicáveis e de soluções bloqueadas, o sujeito exclama: «Quero compreender (o que me está a acontecer)!»”. In BARTHES, Roland – Fragmentos de um discurso amoroso. Lisboa, Ed. 70, s.d., p. 82.  
2. Idem, p. 98.
3. Frottage é “a técnica de reproduzir uma determinada textura em relevo, colocando sobre a mesma uma folha de papel, riscando em seguida o papel com um lápis. Muito usada pelos Surrealistas para o desenvolvimento de imagens, particularmente por Max Ernst”. In LUCIE-SMITH, Edward – Dicionário de termos de arte. Lisboa, Pub. D. Quixote, 1990, p. 93.
4. In BARTHES, Roland, Ob.cit., p. 98.
Skins Frottage a pastel de óleo sobre papel de arroz e crina de nylon 210 x 140 cm
Skins Frottage a pastel de óleo sobre papel de arroz e crina de nylon 210 x 140 cm
Pormenor Skins Frottage a pastel de óleo sobre papel de arroz e crina de nylon
Pormenor Skins Frottage a pastel de óleo sobre papel de arroz e crina de nylon
Skins Frottage a pastel de óleo sobre papel de arroz e crina de nylon 210 x 140 cm
Skins Frottage a pastel de óleo sobre papel de arroz e crina de nylon 210 x 140 cm

Bronzes

Etiquetas de bronze niquelado 1,20 x 0,18 m (cada peça

Mal me quer, Bem me queira...

"LOVE AFFAIR" de Isabel Garcia ocupa três espaços diferenciados, com desenhos, objectos em bronze e gesso e uma projecção multimédia, em três instalações pensadas em torno da (in)decisão do amor e de imaginários cruzados pela linguagem e pela imagem a partir dele. 0 presente trabalho tem raízes numa série exposta em 2003, a que chamou Fábulas e Enigmas. Mas introduz a figura humana, nela ausente, trazendo com ela a dimensão da escolha, da vontade e da consciência à sorte lançada por uma espécie de baralho de cartas jogado e conjugado no feminino.

L'animal carnivore mange des animaux herbivores. Le lion dévore Ia gazelle, et l'homme le lapin. C'est que (a chair des animaux carnivores n'est guère savoureuse.

Michel Tournier, "L'animal et te vegetal", in Le Miroir des Idées (1)


Num pequeno texto sobre o animal e o vegetal, Michel Tournier anota evidências simples como a de que a mobilidade á a principal distinção entre o vegetal e o animal e a de que a mobilidade é a principal distinção entre o vegetat e o animal e a de que o primeiro se serve do segundo para alguns transportes de grãos; e a de que a essência das plantas é a corrente que estabelece entre as profundezas da terra em que enterra as raízes e as alturas aéreas em que agita as folhas. E neste, como noutros textos da compilação, sublinha as diferenças como complementaridades, as oposições como imagens em espelho. Num trabalho mostrado em 2003 na Galeria J. Gomes Alves, em Guimarães, a que chamou Fábulas e Enigmas, a estrutura dual dos actuais trabalhos com figuras humanas estava presente: a folha dividida entre o cimo e o baixo, a contaminação entre o território duma e doutra figura; um lugar geométrico entre as duas, explorando a mancha do rectângulo, do quadrado, do círculo ou da elipse não exactos; uma relação semântica forte entre as duas figuras (quase uma narrativa), uma fiscalidade pictórica, matérica e informal dos ambientes e dos suportes dos trabalhos (pintura, desenho e colagem sobre papel ou sobre tela), aliada a uma definição nítida e trabalhada do desenho das figuras. Mas era o mundo animal que as povoava.

Algumas referências vegetais (fios, lianas, troncos finos) uniam em rolos e emaranhados verticalmente desenvolvidos, os protagonistas antagónicos das histórias. Ligados pelas patas, pela barriga, por casulos, por cordões umbilicais ou traçados nos caminhos, os bichos de Esopo ou ta Fontaine eram já porta-vozes das falsas dualidades ilustradas pelo aproveitamento do outro, pela malícia exploradora, vingativa, egoísta; por essa negação de tudo o que identificamos com a "harmonia natural das coisas". E se a não encontramos nesta sofreguidão de enganar ou comer o outro que aparece nas fábulas, é porque, mais do que animais, se fala, através deles, de pessoas.

A memória vegetal desses trabalhos está também presente nos que agora se expõem, sintetizada numa só espécie emblemática: o malmequer. Emblemática porque dela emana uma cantilena muito popular, "malmequer, bem me quer, muito, pouco ou nada" e a candura de um ritual: desfolhá-lo até ao fim e ler o presente na configuração do acaso numérico da flor que nos calhou em sorte.

Um decalque simples do ritmo da primeira parte da cantilena dá origem à série de vinte e quatro frases, associada às vinte e quatro mulheres destes trabalhos e que neles são carimbadas: "Kiss me Kisss me not...unbotton me, unbotton me not, it me, it me not..."

Algumas são escritas em etiquetas, como nomes de elixires ou códigos de um cadeado; são vinte e quatro frases que exibem a sua força secreta de palavras e de enigmas: imperativos contraditórios, invocam o ser e o não ser, o fazer e o não fazer; ou alternadamente as duas coisas. São associáveis a diferentes esferas do imaginário ligado ao amor: antropogáfico (comer, depenar), maternal (embalar, pacificar), lúdico e desafiador (desassossegar, jogar, coçar), preliminar (desejar, desatar, desabotoar, beijar, apertar), da troca simbólica ou comercial (pagar, casar).

Que cidade é esta? Pergunta o jovem da história. A cidade do todo? È a cidade onde todas as partes se juntam, onde se ponderam as opções, onde se preenche o vazio que fica entre o que esperamos da vida e o que dela nos calha?

Italo Calvino, "História do Indeciso", in O Castelo dos Destinos Cruzados (2)


Emblemáticas, encantatórias, as frases dessas etiquetas de papel encenam um jogo com o destino entregue a si próprio e onde o jogador não interfere. Podem ser ditas/agidas pelo sujeito (cada uma destas mulheres), ou ser reprodução, eco da linguagem do outro que se lhes dirige. Em qualquer dos casos é a indecisão que emerge como forma de (aparentemente) tudo ter. Dela se sublinha a insolubilidade entre os princípios de prazer e de realidade, a vontade de benefícios simultâneos (ter, não ter, amar, não amar), a incapacidade de lidar com a privação, que é a outra face do sentimento de posse, e a incapacidade de lidar com a presença, a existência real do outro, que é a outra face do desamor.

A atitude da indecisão tolhe os gestos entre a performatividade e a contemplação; suspende o sujeito entre a contingência e o peso definitivo de um acto volitivo; hesita nas formas de continuidade entre as coisas. Pode ser tempo legítimo de reflexão ou maturação, mas para além de um limite determinado tende para o informe; abdica de linhas axiais, de projecto, confunde-se no lodaçal. Da obra ao negro pode não sair nunca um caminho para a obra ao rubro.

Viver não é decidir? Jogar, se disso se tratar, não é um misto de acaso e decisão? As figuras destes desenhos são como personagens de um baralho de cartas: há nelas algo de capricho lúdico, de rigidez alegórica de simbologia subliminar. A contradição e a indecisão habitam o seu meio ambiente e contagiam o seu movimento giratório, sem saída, como numa caixa de música ou montra de bonecas. Vimo-las de frente (as de cima) e de costas (as de baixo). Com duas excepções: numa delas Auguste Strobl (1827) estando de costas, descobre-nos o rosto a três quartos (em cima) e estando de frente, esconde o rosto para trás, a três quartos também (em baixo). Esta é a única figuração não verbal da indecisão. Indecisão de quem é interpelada pela indecisão do outro. Suspensão cúmplice. Este é o personagem mais subtilmente perturbador do conjunto. No enigmático O Castelo dos Destinos Cruzados de Italo Calvino, em que o autor faz surgir várias narrativas da composição de cartas de tarot sobre uma mesa, há uma "História do Indeciso". Nela se lê, a certa altura, que "toda a opção tem um reverso, quer dizer implica uma renúncia, e assim não existe diferença entre o acto de escolher e o acto de renunciar." E assim parece ser se, e quando, tanto o acto de escolher como o de renunciar são livres, opcionais, voluntários. Não é próprio da decisão, o acontecimento involuntário.

Há ainda um tempo de tolerância na história de cada indecisão, cujo esgotamento equivale a um novo estado de coisas decididas (mesmo que resultantes duma não decisão). 0 lugar, "a cidade" onde se ponderam as opções existe dentro desse tempo de tolerância, para além do qual, algo que é exterior ao sujeito, decidirá por ele, e fora do qual, uma cadeia de seres verão incumprido o seu primeiro destino. "Por não escolheres tu, impediste a minha escolha" - diz alguém ao jovem da história de Calvino. Algumas imagens da metamorfose de um anjo em demónio figuram o lugar tenebroso em que se encontra o indeciso depois desse tempo: surge um ser com asas de morcego, um corpo nu de hermafrodita, com as mãos e os pés que se prolongam em garras, duas criaturas aos seus pés "de feições ao mesmo tempo humanas e animalescas, com cornos, cauda, penas, patas e escamas, e ligados à grifenha personagem por dois compridos filamentos ou cordões umbilicais...". Quando fala, a criatura diz: "Eu sou o anjo que habita o ponto em que as linhas se bifurcam. Quem remontar às coisas divididas encontrame, quem descer ao fundo das contradições vem chocar-se comigo, quem tornar a misturar o separado sentirá a minha asa membranosa na cara".

Que melhor sintonia ou enquadramento duma ressonância literária poderíamos desejar para relembrar os trabalhos "Fábulas e enigmas", 2003, na origem dos que se agora se expõem? 0 animal lendário é frequentemente aquele que habita as trevas da nossa condição humana nas (trans)figurações que a arte dela opera, a sua "bestialidade" potencial.

Talvez por isso se tornou tão imperioso, no trabalho de Isabel Garcia, substituí-lo pela figura humana. Mesmo que ele exista como memória. A figura humana acrescenta ao universo animal a presença essencial da consciência. È no âmbito da consciência e não apenas da atracção (animal) que o ser humano dá um destino à procura do outro e da dualidade complementar.

          Je suis le thé, tu es Ia tasse,
          Toi la guitare et moi la basse,
          Je suis la pluie, et tu es mes gouttes
          Tu es le oui et moi le doute
          T'es le bouquet, je suis les fleurs
          Tu es l'aorte, et moi le coeur
          Toi t'es l'instant, moi te bonheur
          (...)
          Tu es l'amer et moi te doux,
          Tu es le néant, et moi te tout,
          Tu es le chant de ma sirène,
          Tu es le sang et moi Ia veine,
          T'es le jamais de mon toujours,
          T'es mon amour, t'es mon amor
          Carta Bruni, Le Toi du Moi (3)

Estes excertos, escolhidos numa longa lista de imagens de complementaridade na canção de Carla Bruni, são a expressão sensível e poética, apesar de popular e pueril no tom, dessa espécie de estado de graça dado pela relação amorosa: cada um é cara ou coroa da mesma moeda em cada momento, situação, troca, sentimento, iniciativa... Cada imagem é, no poema expressão da unidade na dualidade, do desafio que cada metade é para a outra, do inesperado que emerge duma associação. È esta realidade ou utopia dos projectos de amor que a artista evoca, a partir de figuras da dualidade, e sobretudo explorando, através delas, tanto a coexistência como a exclusão das duas partes num todo: ficar e/ou partir, querer e/ou não querer, continuar e/ou desistir são estados de alma, são actos e (in)decisões que podem perpetuar-se no limbo onde se oscila entre prazer e sofrimento, posse e ausência, exaltação e vazio; ou podem dar lugar a uma cisão clara, informar ou iluminar uma (de)cisão.

Há um recurso vegetal (como um talismã) omnipresente nestes desenhos: as folhas e o coração duma flor irradiam plenitude, corpo, calor, segredo; são mandala, nó górdio, roda da fortuna, umbigo do mundo de cada figura. A partir dela se definem os vagos espaços geométricos que separam na folha o norte e o sul, a ascensão e a queda, o rosto e as costas. A partir dela se lêem as opções formais de estabelecer camadas de transparências com resinas e pinceladas informais. Nela germinam as unidades verbais a repetir, organizar, fazer ecoar pela "folha". Num dos casos as frases são carimbadas em círculos, sobrepostos, fazendo eles próprios uma flor. Noutros casos em oval, e cada uma é um ovo, uma gestação. Podem ainda acumular-se em listas, em espelho, em compactos tipográficos. A escrita como imagem tece uma teia em todos os espaços de figuração e de matéria da pintura.

A figura da etiqueta torna-se então paradigmática: cataloga, reduz a uma marca cada imperativo indeciso e cada "objecto de consumo" (cada mulher). Espalha-se por toda a folha do desenho (ou por todas as folhas da flor?), os fios deixam-se tingir pela cor amarelada do malmequer e podem ser caóticas, ou muito alinhadas, podem escapar aos espaços ou assinalar o seu perímetro. A etiqueta, na sua remissão para o mundo do comércio, faz parte do território que fará surgir as três últimas mulheres desta série: Madona, trinity (Matrix) e Lara Croft (jogo de consola), respectivamente com as frases "pay me, pay me not, pax me, pax me not e play me play me not". Têm uma presença afirmativa, provocante, agressivamente sensual, que altera totalmente os dados do jogo com as outras "cartas": carinhas de porcelana, hirtas e irreais, antigas, minúsculas, escondidas no tabuleiro do jogo. Na origem destas terão estado modelos tão diversos como uma boneca, uma cabeça relicário do Mosteiro de Alcobaça, a filha de Isabel Garcia, uma figura do renascimento flamenco, uma pintura de Holbein representando Caterine Howard, mulher de Henrique VIII, o capuchinho vermelho, outras mulheres pintadas, do séc. XVI ao XIX...

Os penteados, muito elaborados ou escondidos em toucados, os vestidos de mangas empoladas e o corpete muito cingido ao corpo, as insígnias de realeza, os mantos, as jóias ao pescoço, as grinaldas dessas mulheres facilmente remetem para a mulher objecto, estática e com os braços e mãos escondidos (sem agir) que a atitude desafiadora daquelas três subverte. Descobertas até à cintura, e em dois dos casos com uma arma de fogo nas mãos, aquelas três são figuras grotescas do retorno do recalcado no feminino. Esconder ou mostrar o quê das mulheres? Talvez seja uma das perguntas a formular. Entre a fragilidade anacrónica e a dominação agressiva não há, neste baralho de cartas, nenhuma miragem de equilíbrio. Nem mesmo o capuchinho Vermelho, entre a inocência e a perversão, pedindo para ser e não ser comido, nem mesmo a Gran Duquesa Sophie de Bade (1831, de Winterhalter), rodeada por todo o lado da decidida palavra "not", de "squeeze me not"...

Pagar, jogar, pacificar. Ou não. Uma roleta russa. A colagem de facturas à mancha da flor e a todos os lugares geométricos que medeiam estas três figuras, tornam mais explicita a referência a um valor comercial da mulher. As três figuras deste baralho mais ligadas ao simulacro, são as que se definem com mais realismo e menos poesia.

Grave sinal dos tempos, viu-se pouco e pouco aparecer, nas farmácias de vários países do Norte, certos medicamentos contendo a substância" e ostentando agora a etiqueta, não já de qualquer laboratório barato mas de importantes sociedades farmacêuticas, desejosas de deixar em mãos alheias um mercado tão prometedor.

Amin Malouf, O Século Primeiro Depois de Beatriz (4)

A primeira proposta, no espaço cronológico da exposição, é a de uma parede com medalhas ou etiquetas em bronze niquelado, suspensas por cabos de aço, nas quais estão impressas, em relevo, frases sobre a alternância e o ser ou não ser do amor. Porquê glosar expressões conhecidas, aforísticas, musicais, populares sobre o tema mais frequente das histórias da arte, da literatura, da música, das sociedades? Ostentada à entrada da exposição, esta lista de aforismos aparece como uma declaração de direitos ou um código civil onde se fala: da liberdade constitutiva do amor (ou se quer que exista ou não), da sua imaterialidade e volatilidade (não se prende), das suas condições de durabilidade, da sua extensão à pessoa e ao seu mundo; da sua intensidade, simplicidade e exclusividade; dos seus idílios, rituais, generosidades e estratégias de sedução.

Enquanto objectos, estas medalhas parecem também etiquetas de remédios, montra de inscrições fúnebres, restos de um matadouro ou aviário, carimbos, cadeados, uma linha de produção em série. Mais dificilmente montra de jóias, lingotes de metal precioso. Mas a linguagem trá-las ao universo das mais ternas, sábias e ritualizadas concepções do amor. Com o amor não se brinca ("never trifle with love"), lê-se numa delas.

0 romance de Malouf, evocado em epígrafe, através da citação de um excerto em que se fala de um suposto medicamento indutor da gestação de bebés do sexo masculino, é um hino ao profundo reconhecimento do encontro essencial entre homens e mulheres e uma denúncia dessa humanidade grotesca que, desde há milénios não parou de fazer o elogio do macho e desejou nalgumas culturas só ver nascer rapazes. (5) É também do Norte e do Sul do Planeta, do suposto mundo civilizado e do outro que o primeiro explora, que trata o romance, tentando configurar mais um encontro necessário ao futuro da humanidade.

Para as figuras femininas destes trabalhos de Isabel Garcia, Norte e Sul correspondem a presença e abandono, luz e sombra, vontade e desistência. A figura inteira seria a da contemporaneidade de todos os pontos cardeais, de todas as direcções na definição do seu lugar e do seu ser. Seria a sua natureza redonda, completa.

"WET KISSES" é o nome da instalação em que trezentas bolas de ping pong são postas a flutuar na água, dentro de tabuleiros de aço polido. Desenhada em cada uma das bolas, a expressão tem uma conotação erótica imediata, mas a simplicidade desconcertante, o carácter lúdico do dispositivo e a profusão de bolas dessacralizam a temática, desdramatizam, ironizam, divertem. "Beijos" redondos e brancos, leves, flutuantes, móveis, ocos, de pele suave, saltitões... A palavra KISS, seja ela promessa, relato, memória ou previsão, inscreve-se em pequenos glóbulos lisos e redondos que se multiplicam numa unidade circunscrita. As palavras (e os beijos e os desenhos) são como cerejas...


Leonor Nazaré

1.  Michel Toumier, Le Miroir des idées, 1994, ed. Mercure de France, 1996.
2. Italo Calvino, "História do Indeciso", in 0 Castelo dos Destinos Cruzados, 1994, Ed. Teorema, 2003, p. 70.
3. No CD Quefqu' un m'a dit, ed. EM Valentim de Carvalho, 2003. A tradução que aqui me permito fazer destes excertos visa apenas uma facilidade de acesso ao texto; não pretende a fidelidade à qualidade poética e, o efeito de rima, por exemplo, não pôde ser mantido: "Eu sou o chá e tu a chávena / Tu a guitarra e eu o baixo / Eu sou a chuva e tu as gotas / És o sim e eu a dúvida / És o ramo, eu sou as flores / És a aorta, e eu o coração / És o instante, eu a felicidade (...) És o amargo e eu o doce/ És o nada e eu o todo / És o canto da minha sereia / És o sangue e eu a veia / És o nunca do me sempre / 0 Meu amor, o meu amor."
4. Armin Malouf, O Século Primeiro depois de Beatriz, 1992, Ed. Difel, 2002, p. 100.
5. Armin Malouf, Ibidem, p. 56.