ISABELGARCIA

AXIS MUDI . 2007

Com efeito, sempre que não é feito com o intuito explícito de servir de estudo para uma obra que se realizará depois noutro suporte e através de um outro médium (como é o caso do esquiço para a pintura, para a escultura, e mesmo do desenho de projecto utilizado no trabalho de arquitectura ou design), o desenho partilha sempre com a escultura da capacidade de instaurar uma partição nítida no espaço entre dois lugares: um dentro e um fora, um circunscrito e outro por delimitar.

 

Galeria Serpente

  Porto 2007

Fotografias
Exposição
Desenhos de vestir

Fotografias

Fotografias

Vista Pormenor da Exposição

Desenhos de Vestir

Depois de se libertar da sua subordinação à pintura e à escultura, o desenho assumiu, já há tempos, a sua condição de disciplina híbrida mas autónoma. Com efeito, sempre que não é feito com o intuito explícito de servir de estudo para uma obra que se realizará depois noutro suporte e através de um outro médium (como é o caso do esquiço para a pintura, para a escultura, e mesmo do desenho de projecto utilizado no trabalho de arquitectura ou design), o desenho partilha sempre com a escultura da capacidade de instaurar uma partição nítida no espaço entre dois lugares: um dentro e um fora, um circunscrito e outro por delimitar. Mas a partição também é descoberta, desbravar, conhecer esse mesmo espaço. Esta é uma função que quem desenha divide com quem pinta.

Desenhar é hoje praticar uma disciplina totalmente independente no seu estatuto, mas que possui um grau elevado de pontos de contacto com a tradição da pintura e da
escultura. Este carácter híbrido, que é provocado e justificado pela contemporaneidade em que vivemos, manifesta-se também noutras áreas da prática artística visual e
performativa. No campo que nos ocupa, esta característica é sempre atravessada pelo corpo concreto do artista e, por extensão, do espectador: hoje não é possível a nenhum artista pensar uma série de trabalhos sem simultaneamente levar em conta a actividade do visitante que verá a sua exposição. A interacção que este fará com o espaço, e por vezes com a obra, determinará as condições da sua percepção e até a própria natureza da impressão que receberá e que depois levará consigo, para o seu quotidiano.

Não há, assim, obra de arte sem pensamento mais ou menos explícito sobre o corpo que a realiza e o corpo que a usufrui no espaço da galeria, em primeiro lugar. E é neste
sentido que a obra de Isabel Garcia, e em particular estes trabalhos mais recentes, adquirem o seu sentido mais profundo. Mesmo quando se aproxima da escultura ou da
pintura, a sua obra é sempre, em primeiro lugar, desenho: ou inscrição de um traço no espaço real e virtual, ou impressão de uma forma sobre a folha de papel. O papel pode, ou não, ser colado sobre tela, e assemelhar-se assim à pintura. Mas o que realmente aqui~é importante é que a base de trabalho, a origem de onde todo o universo de formas nasce reside no risco do lápis sobre a folha de papel.

Vejamos de uma forma mais atenta o processo de construção destes trabalhos. Nas peças redondas, bidimensionais e coloridas, a artista realizou ‘frottages’ de superfícies
diversas que têm em comum o facto de possuírem um padrão abstracto. Ao contrário dos seus predecessores surrealistas, que deram a este processo a sua qualificação
artística, Isabel Garcia não procura revelar imagens projectadas pelo inconsciente sobre a superfície informe obtida pelo riscar do lápis sobre uma base texturada. Bem pelo
contrário, o que lhe interessa é o processo, o tempo, o ritmo, o gesto. Depois do decalque dessa textura, acentua com cor estes ou aqueles pormenores, e vai assim
construindo cadeias de signos que se intersectam sobre o desenho.

Este processo já tinha sido utilizado em anteriores séries suas; pode mesmo afirmar-se que a repetição metódica está na base da permanência de um tema e da mudança de série para série. Ora, quem fala de repetição, de gesto, de ritmo fala necessariamente de corpo, de um corpo que é circundado pelo desenho sem o conhecer previamente. O desenho revela-se no corpo; e por isso foi acertado pensar em ritmos cósmicos, em meridianos e paralelos, em linhas abstractas que vão estriando um espaço à medida em que ele é desbravado.

Muito a propósito, uma das peças com mais impacto nesta série é constituída por um cubo aberto no topo, de interior espelhado, que recebe no seu interior uma série de
segmentos de tubo soldados em diversos ângulos, em metal polido, num conjunto que cria um labirinto visual para o espectador que nele se debruce. Espectador esse cuja imagem reflectida fará sempre parte da obra, quer ele tenha essa intenção ou não... sem limites, já que a reflexão nos espelhos paralelos é virtualmente infinita, essa imagem mergulha no vórtice que o remete para um espaço infindável, ou pelo menos incomensurável, e um tempo também que os nossos instrumentos quotidianos de
medição não alcançam. A peça intitula-se “Eixo do Mundo”, já que o tempo e o espaço são realmente os conceitos com que medimos o mundo; mas os eixos que nos mostra estão quebrados, como se esse eixo de que o título fala não fosse tangível, mas invisível...

Outras peças, também feitas a partir dos mesmos tipos de tubos de metal, foram fechadas através de um processo de soldadura. Possuem uma escala orgânica, como
cintos que pudessem encerrar um corpo no seu interior. E, neste processo, desenham uma linha sobre esse corpo anónimo, ou seja, tornam-se desenho. Do mesmo modo, se fizermos o mesmo tipo de associação, os eixos que cruzavam os espelhos da peça anterior também desenhavam linhas quebradas sobre a imagem do espectador.

Assim, o desenho torna-se aqui uma segunda pele, como o vestuário o é. Inscreve-se no próprio corpo, veste-o, adorna-o, e por fim deixa a marca autoral do artista sobre quem o vê, quem o usa, quem dele se serve. O processo, que começou pela inscrição metódica e ritmada (como um ritual de infância) na pele do papel, complexifica-se à medida que chegamos ao ponto de encerramento desta série. E acaba por se tornar na síntese da obra com o corpo.

Luísa Soares de Oliveira
Julho de 2007