ISABELGARCIA

ROSA ROSAE . 2005

Assim como há sempre duas versões para a mesma história, também as obras de arte se deixam ler, entender e interpretar de diversas maneiras. Uma delas diz respeito à análise estritamente formal, que pouco se preocupa com os significados. E, desse modo, poderíamos dizer que as obras escolhidas por Isabel Garcia para figurar nesta exposição possuem formas em comum e que foram buscar à contemporaneidade o princípio da colagem para se construírem. Nos desenhos, por exemplo, trata-se de uma colagem real, objectiva, de mãos de estanho e de uma palavra latina que se repete incessantemente sobre os suportes. 

 

Museu de Alberto Sampaio

Guimarães •Junho de 2005

Video Rosa Rosae 

de Isabel Garcia

Instalação

ROSA ROSAE

Skins

ROSA ROSAE

Minha flor, meu encanto...

Luísa Soares de Oliveira

ISABELGARCIA

Esta instalação é composta por escultura, desenho e vídeo, e através dele, e feita uma reflexão acerca da violência exercida sobre as mulheres, tanto a nível físico como psicológico.

Instalação Rosa Rosae

Instalação Rosa Rosae: Conjunto de sete esculturas em ferro, alumínio e betaclón, 2,5 x 1 m cada peça | Desenhos  Frottage e Estanho sobre Papel de Arroz

Skins Frottage e Estanho sobre Papel de Arroz , 78 x 102 cm
Skins Frottage e Estanho sobre Papel de Arroz , 78 x 102 cm
Skins Frottage e Estanho sobre Papel de Arroz , 78 x 102 cm
Skins Frottage e Estanho sobre Papel de Arroz , 78 x 102 cm
Skins Frottage e Estanho sobre Papel de Arroz , 78 x 102 cm
Skins Frottage e Estanho sobre Papel de Arroz , 78 x 102 cm
Skins Frottage e Estanho sobre Papel de Arroz , 100 x 200 cm
Skins Frottage e Estanho sobre Papel de Arroz , 100 x 200 cm

Minha flor, meu encanto, meu martírio

Assim como há sempre duas versões para a mesma história, também as obras de arte se deixam ler, entender e interpretar de diversas maneiras. Uma delas diz respeito à análise estritamente formal, que pouco se preocupa com os significados. E, desse modo, poderíamos dizer que as obras escolhidas por Isabel Garcia para figurar nesta exposição possuem formas em comum e que foram buscar à contemporaneidade o princípio da colagem para se construírem. Nos desenhos, por exemplo, trata-se de uma colagem real, objectiva, de mãos de estanho e de uma palavra latina que se repete incessantemente sobre os suportes. E os fios, que por sua vez unem (ou separam) o motivo das mãos presentes em todos os trabalhos. Adiante, há esculturas onde figuras se apoiam em saias-corolas. Mais longe, um filme onde vemos rosas cortadas que caem no chão, e o som insuportavelmente alto, violento, do corte das flores – e aqui poderíamos falar da montagem entre som e imagem que confere à visão de um acto aparentemente banal a inquietação suficiente para percebermos que não estamos, afinal, perante uma cena doméstica. Ou talvez não; talvez a beleza das rosas cortadas seja afinal, como sempre que se passa para a esfera privada, uma máscara que oculta o lado de violência que as relações íntimas inevitavelmente possuem sempre.

“Eu tinha 12 anos quando me levaram de casa da minha avó para um lugar especial. Levaram-me para o rio. A água estava muito fria e isso adormeceu o meu corpo.” - Gloria

Na obra de Isabel Garcia, os trabalhos que nos apresenta nesta exposição resultam de uma reflexão sobre um tema da actualidade social. No caso presente, trata-se da excisão feminina, praticada tradicionalmente em boa parte do continente africano, e mais recentemente também nos países de destino da emigração que ali se origina. Como sucede quase sempre quando se trata de violência praticada sobre a mulher, os aspectos afectivos da questão contribuem para complexificar esta prática: sem excisão não há possibilidade de casamento, logo de integração no meio social. Mas há mais: a teia entre o casamento e os afectos que lhe estão associados é de tal modo estreita, que frequentemente são as próprias rapariguinhas que pedem para ser excisadas. Rito de passagem, mutilação, circuncisão feminina, como é tantas vezes descrita pelos seus adeptos, a excisão destina-se a marcar a passagem de menina a mulher, e por esse motivo a afirmar que a idade adulta chegou. Neste sentido, afirma o amor da família pela menina; o ocidental dito de que, quanto mais se bate em alguém, mais se gosta dessa pessoa, encontra nas justificações desta prática o correlativo evidente. Não há menina excisada sem que ela seja amada pela família; não há, em certos casos, noiva escolhida pelo marido sem que ela se tenha previamente submetido à mutilação genital.

“Despiram-me. Tive que me sentar numa pedra especial. Uma mulher muito forte tapou-me os olhos e a boca. Disse-me que se eu gritasse isso ia trazer azar à minha família”. - Amie

Ambivalência nos afectos, assim; e uma ambivalência que encontra também o seu eco plástico, sensível nos híbridos criança-flor (ou noiva-flor?) que Isabel Garcia nos mostra, na insensibilidade com que as flores são cortadas no filme vídeo, mas sobretudo nos grandes desenhos sobre papel onde a palavra ‘rosa’ assume a sua raiz latina e se declina em todas as formas possíveis, quase como uma lenga-lenga. Falámos de desenhos, mas na realidade estas obras pouco têm em comum com o desenho: são feitas com a frottage de um carimbo que cobre o espaço disponível, de um modo quase mecânico, deixando depois aparentes os escorrimentos da tinta e as manchas resultantes do próprio processo de trabalho. Neste caso específico, as palavras são índices, no sentido que Pierce deu a esta palavra: o de um signo que possui uma relação de afinidade imediata com o seu significante. E, sempre nesta ordem de ideias, os índices (como pegadas, como marcas impressas) possuem mais pontos em comum com a fotografia do que com o desenho entendido como conceito.

“No fim, o meu pai abençoou-me e disse-me que tinha orgulho em mim, porque os pais das raparigas que não cumprem o rito não são respeitados na comunidade.” - Fatoumata

O desenho como conceito: inscrever uma linha no espaço para nele delimitar uma forma, uma cartografia, um território. Paradoxalmente, o desenho é aqui dado pelos arames que ligam ou cortam o espaço do que pela cor e a mancha sobre o papel. De desenhos tradicionais, estas obras apenas têm assim apenas a aparência. Na realidade são impressões de uma realidade, às quais Isabel Garcia sobrepõe um território, que é o do desligar e ligar dos afectos. Daí a inquietação que nos provocam: a associação entre o nome da flor e a identidade feminina assume a sua raiz cultural, ao passo que as mãos que desdobram novelos de fio de metal se imbricam em tradições populares que pouco têm a ver com a sofisticação das declinações latinas. E, sobretudo, no jogo sem finalidade nem vencedor de trocar uma teia de cordel de mão para mão, interminavelmente. Como uma lenga-lenga de criança. “A minha mãe chegou então com um cesto com carne, para mostrar a toda a gente que eu agora estava abençoada e já podia possuir o meu próprio gado. Pouco tempo depois a comunidade começou a tratar do meu casamento.” Antónia Na contemporaneidade, a lenga-lenga, como a litania, provém de um universo que está bem longe da racionalização modernista. Se esta última pode ter por conclusão lógica o conceito – uma ideia que dá origem à obra -, a lista de palavras feita ao acaso liga-se sobretudo aos mecanismos inconscientes que geram associações pré-racionais, e que partem de uma obra para se expandir rizomaticamente (...)

(...) pelo território da vida. Duchamp, por exemplo, gostava de listas de palavras; uma delas dizia “Vida lenta / Círculo vicioso / Onanismo horizontal / Pára-choques de vida / Vida celib., considerada como o ricochete alternativo sobre esse pára-choques / ricochete = pechisbeque de vida / construção barata / Ferro branco / Cordas / arame / Roldanas grosseiras de madeira / Excêntricos / Volante monótono ”, para comentar o motivo do carro no seu Grande Vidro. E, por outro lado, os escritos que deixou possuem um carácter fragmentário que deixa em aberto a intrepretação sobre sentido que o autor lhes quis dar. Sempre o lugar do espectador com parte integrante da obra; sempre, porque a leitura que faz também integra o significado possível. Nos antípodas desta litania, e sempre dentro do campo da linguagem, visual ou outra, teríamos a série, na medida em que ela é o resultado organizado e bem delimitado de uma repetição. Uma repetição que, como todas as repetições do idêntico, resulta da consideração do corpo como uma máquina que ele, afinal, é sempre – uma máquina bem oleada e perfeita, por um lado, contrapondo-se às máquinas celibatárias de Duchamp, que nada produzem além do seu próprio estéril prazer.

“A dor é insuportável. Mãe, ó mãe, porque é que a tua filha tem que chorar contigo?”. - Sidibé

Repetição, corpo como máquina, prazer – eis os três termos subjacentes à temática que Isabel Garcia trata nestas obras, a partir de uma série de palavras que se olham em espelho (mas num espelho que deforma, que apresenta uma realidade inquietante) num entrançado de fios; ou na mecânica bem oleada de cortar flores, vista em espelho na multiplicação de meninas-flor... Resta-nos voltar ao índice, à marca indelével sobre o corpo que duplica também, embora metaforicamente, a marca deixada na carne pela fíbula. Falámos das lenga-lengas e das litanias; resta-nos lembrar que elas servem sempre para consolar, acalmar, diminuir a dor – ou preparar o espírito para uma prova necessária e cruel que o corpo, essa máquina de vida, deve sofrer.


Luísa Soares de Oliveira