Assim como há sempre duas versões para a mesma história, também as obras de arte se deixam ler, entender e interpretar de diversas maneiras. Uma delas diz respeito à análise estritamente formal, que pouco se preocupa com os significados. E, desse modo, poderíamos dizer que as obras escolhidas por Isabel Garcia para figurar nesta exposição possuem formas em comum e que foram buscar à contemporaneidade o princípio da colagem para se construírem. Nos desenhos, por exemplo, trata-se de uma colagem real, objectiva, de mãos de estanho e de uma palavra latina que se repete incessantemente sobre os suportes.
Guimarães •Junho de 2005
Esta instalação é composta por escultura, desenho e vídeo, e através dele, e feita uma reflexão acerca da violência exercida sobre as mulheres, tanto a nível físico como psicológico.
Instalação Rosa Rosae: Conjunto de sete esculturas em ferro, alumínio e betaclón, 2,5 x 1 m cada peça | Desenhos Frottage e Estanho sobre Papel de Arroz
Assim como há sempre duas versões para a mesma história, também as obras de arte se deixam ler, entender e interpretar de diversas maneiras. Uma delas diz respeito à análise estritamente formal, que pouco se preocupa com os significados. E, desse modo, poderíamos dizer que as obras escolhidas por Isabel Garcia para figurar nesta exposição possuem formas em comum e que foram buscar à contemporaneidade o princípio da colagem para se construírem. Nos desenhos, por exemplo, trata-se de uma colagem real, objectiva, de mãos de estanho e de uma palavra latina que se repete incessantemente sobre os suportes. E os fios, que por sua vez unem (ou separam) o motivo das mãos presentes em todos os trabalhos. Adiante, há esculturas onde figuras se apoiam em saias-corolas. Mais longe, um filme onde vemos rosas cortadas que caem no chão, e o som insuportavelmente alto, violento, do corte das flores – e aqui poderíamos falar da montagem entre som e imagem que confere à visão de um acto aparentemente banal a inquietação suficiente para percebermos que não estamos, afinal, perante uma cena doméstica. Ou talvez não; talvez a beleza das rosas cortadas seja afinal, como sempre que se passa para a esfera privada, uma máscara que oculta o lado de violência que as relações íntimas inevitavelmente possuem sempre.
“Eu tinha 12 anos quando me levaram de casa da minha avó para um lugar especial. Levaram-me para o rio. A água estava muito fria e isso adormeceu o meu corpo.” - Gloria
Na obra de Isabel Garcia, os trabalhos que nos apresenta nesta exposição resultam de uma reflexão sobre um tema da actualidade social. No caso presente, trata-se da excisão feminina, praticada tradicionalmente em boa parte do continente africano, e mais recentemente também nos países de destino da emigração que ali se origina. Como sucede quase sempre quando se trata de violência praticada sobre a mulher, os aspectos afectivos da questão contribuem para complexificar esta prática: sem excisão não há possibilidade de casamento, logo de integração no meio social. Mas há mais: a teia entre o casamento e os afectos que lhe estão associados é de tal modo estreita, que frequentemente são as próprias rapariguinhas que pedem para ser excisadas. Rito de passagem, mutilação, circuncisão feminina, como é tantas vezes descrita pelos seus adeptos, a excisão destina-se a marcar a passagem de menina a mulher, e por esse motivo a afirmar que a idade adulta chegou. Neste sentido, afirma o amor da família pela menina; o ocidental dito de que, quanto mais se bate em alguém, mais se gosta dessa pessoa, encontra nas justificações desta prática o correlativo evidente. Não há menina excisada sem que ela seja amada pela família; não há, em certos casos, noiva escolhida pelo marido sem que ela se tenha previamente submetido à mutilação genital.
“Despiram-me. Tive que me sentar numa pedra especial. Uma mulher muito forte tapou-me os olhos e a boca. Disse-me que se eu gritasse isso ia trazer azar à minha família”. - Amie
Ambivalência nos afectos, assim; e uma ambivalência que encontra também o seu eco plástico, sensível nos híbridos criança-flor (ou noiva-flor?) que Isabel Garcia nos mostra, na insensibilidade com que as flores são cortadas no filme vídeo, mas sobretudo nos grandes desenhos sobre papel onde a palavra ‘rosa’ assume a sua raiz latina e se declina em todas as formas possíveis, quase como uma lenga-lenga. Falámos de desenhos, mas na realidade estas obras pouco têm em comum com o desenho: são feitas com a frottage de um carimbo que cobre o espaço disponível, de um modo quase mecânico, deixando depois aparentes os escorrimentos da tinta e as manchas resultantes do próprio processo de trabalho. Neste caso específico, as palavras são índices, no sentido que Pierce deu a esta palavra: o de um signo que possui uma relação de afinidade imediata com o seu significante. E, sempre nesta ordem de ideias, os índices (como pegadas, como marcas impressas) possuem mais pontos em comum com a fotografia do que com o desenho entendido como conceito.
“No fim, o meu pai abençoou-me e disse-me que tinha orgulho em mim, porque os pais das raparigas que não cumprem o rito não são respeitados na comunidade.” - Fatoumata
O desenho como conceito: inscrever uma linha no espaço para nele delimitar uma forma, uma cartografia, um território. Paradoxalmente, o desenho é aqui dado pelos arames que ligam ou cortam o espaço do que pela cor e a mancha sobre o papel. De desenhos tradicionais, estas obras apenas têm assim apenas a aparência. Na realidade são impressões de uma realidade, às quais Isabel Garcia sobrepõe um território, que é o do desligar e ligar dos afectos. Daí a inquietação que nos provocam: a associação entre o nome da flor e a identidade feminina assume a sua raiz cultural, ao passo que as mãos que desdobram novelos de fio de metal se imbricam em tradições populares que pouco têm a ver com a sofisticação das declinações latinas. E, sobretudo, no jogo sem finalidade nem vencedor de trocar uma teia de cordel de mão para mão, interminavelmente. Como uma lenga-lenga de criança. “A minha mãe chegou então com um cesto com carne, para mostrar a toda a gente que eu agora estava abençoada e já podia possuir o meu próprio gado. Pouco tempo depois a comunidade começou a tratar do meu casamento.” Antónia Na contemporaneidade, a lenga-lenga, como a litania, provém de um universo que está bem longe da racionalização modernista. Se esta última pode ter por conclusão lógica o conceito – uma ideia que dá origem à obra -, a lista de palavras feita ao acaso liga-se sobretudo aos mecanismos inconscientes que geram associações pré-racionais, e que partem de uma obra para se expandir rizomaticamente (...)
(...) pelo território da vida. Duchamp, por exemplo, gostava de listas de palavras; uma delas dizia “Vida lenta / Círculo vicioso / Onanismo horizontal / Pára-choques de vida / Vida celib., considerada como o ricochete alternativo sobre esse pára-choques / ricochete = pechisbeque de vida / construção barata / Ferro branco / Cordas / arame / Roldanas grosseiras de madeira / Excêntricos / Volante monótono ”, para comentar o motivo do carro no seu Grande Vidro. E, por outro lado, os escritos que deixou possuem um carácter fragmentário que deixa em aberto a intrepretação sobre sentido que o autor lhes quis dar. Sempre o lugar do espectador com parte integrante da obra; sempre, porque a leitura que faz também integra o significado possível. Nos antípodas desta litania, e sempre dentro do campo da linguagem, visual ou outra, teríamos a série, na medida em que ela é o resultado organizado e bem delimitado de uma repetição. Uma repetição que, como todas as repetições do idêntico, resulta da consideração do corpo como uma máquina que ele, afinal, é sempre – uma máquina bem oleada e perfeita, por um lado, contrapondo-se às máquinas celibatárias de Duchamp, que nada produzem além do seu próprio estéril prazer.
“A dor é insuportável. Mãe, ó mãe, porque é que a tua filha tem que chorar contigo?”. - Sidibé
Repetição, corpo como máquina, prazer – eis os três termos subjacentes à temática que Isabel Garcia trata nestas obras, a partir de uma série de palavras que se olham em espelho (mas num espelho que deforma, que apresenta uma realidade inquietante) num entrançado de fios; ou na mecânica bem oleada de cortar flores, vista em espelho na multiplicação de meninas-flor... Resta-nos voltar ao índice, à marca indelével sobre o corpo que duplica também, embora metaforicamente, a marca deixada na carne pela fíbula. Falámos das lenga-lengas e das litanias; resta-nos lembrar que elas servem sempre para consolar, acalmar, diminuir a dor – ou preparar o espírito para uma prova necessária e cruel que o corpo, essa máquina de vida, deve sofrer.
Luísa Soares de Oliveira